___

João Nora

Blow Up - Imagens de Realidade

Publicado em: Art Notes, nº 14, Março de 2007

Nos últimos anos, a pintura tem assistido ao reconhecimento e à celebração da sua capacidade de mudança e adaptação face às novas realidades e paradoxos do mundo contemporâneo. Ambiciosas exposições colectivas de perfil internacional são reflexo desta tendência global, à qual os artistas portugueses não são alheios nem indiferentes. Do heterogéneo conjunto de jovens artistas nacionais que têm realizado uma aproximação à pintura desde uma atitude reflexiva, enquanto prática manual detentora de valores estéticos que apenas ganham sentido associados a uma ideia ou projecto determinado, distinguem-se as propostas de João Nora(Cantanhede, 1979).

Licenciado em Pintura pela Escola Universitária de Artes de Coimbra (ARCA-EUAC), entre 2004 e 2005 frequentou o curso avançado de artes visuais da MAUMAUS, em Lisboa. Desde 2000, João Nora tem exposto de forma regular, destacando-se a sua participação na colectiva Projektraum - The Art of Critical Thinking and Transmuting Experience: Film and Video (Kunstraum, Innsbruck, 2005), assim como as mostras individuais na Sala Post-Ite do Edifício Artes em Partes (Iconmarché) e no Espaço [410] Showroom da galeria Graça Brandão (Mimesis Project), ambas apresentadas no Porto, em 2006.

No Projecto Mimesis, o artista mostrou uma série de três pares de pinturas idênticas de grande formato, próximas do look publicitário e baseadas em fotografias de supermercados, cada par assinado e datado em simultâneo. Apesar das obras duplas terem sido executadas a partir da mesma imagem fotográfica, João Nora optou, deliberadamente, por estimar uma delas como “original”, legitimando essa qualidade através de um certificado de autenticidade, enquanto a outra era designada “cópia de autor”. Este factor de diferenciação, de extrema relevância no mercado da arte, é levado às últimas consequências ao definir valores desiguais para as obras – do par de pinturas, o preço de venda da “original” era mais elevado do que o da “cópia”. Os elementos representados, objectos de consumo de produção massiva e industrial disponíveis em qualquer hipermercado, acentuam a exploração do artista sobre a relação entre original e cópia e o vínculo existente entre valor artístico e valor económico. E mais, o facto de exibir e contextualizar um projecto desta natureza numa galeria, espaço primário do negócio da arte, incita o questionamento dos mecanismos de valoração e manipulação monetária do objecto artístico, pois, neste caso, foi o próprio autor o responsável pelo conceito comercial subjacente à proposta e não o galerista. Estamos, portanto, perante a noção de comércio da arte como obra de arte em si mesma, como reflexo do jogo económico que se instaura em torno da criação artística, cujo valor mercantil aparece aqui conceptualizado. De facto, a conceptualização que João Nora faz dos aspectos financeiros da obra de arte outorga ao seu trabalho um vigor crítico que não tem por objectivo arremeter contra o sistema da arte, pelo contrário, assume-se como elemento integrante da engrenagem capitalista do mercado, jogando com alguns dos seus critérios e princípios para configurar um espelho paródico da situação (actual?) da arte contemporânea, em relação à febre inversora na obra de arte única e à sua falta de racionalidade económica.

No próximo mês de Junho será inaugurada na galeria Graça Brandão do Porto a mais recente iniciativa do artista, Projecto R, uma série de pinturas que já desfrutaram de uma breve preview na última edição de ARCO. De novo, as pinturas recorrem à percepção e à estranheza visual com o fim de desafiar o espectador a utilizar a sua inteligência e background de reconhecimento visual. Uma primeira aproximação às obras desperta um sentimento de curiosidade que leva o observador, independentemente do seu grau de indolência mental, a querer decifrar o que vê. Da dificuldade inicial resulta a necessidade de apoio textual – um componente mais do projecto –, informação que tornará o acto de olhar num exercício complexo e intelectual. Com efeito, o processo de construção das imagens e dos dispositivos que condicionam a sua contemplação são desvendados num livro de artista que serve de ponte entre a suposta abstracção das pinturas e a apreensão final do sentido das mesmas, entre a linguagem pictórica de expressão hiper-realista e o conceptualismo, intenção igualmente implícita no Mimesis Project. Por outro lado, um vídeo com grandes planos de exteriores, captado em andamento e a partir de um ângulo inclinado, Por outro lado, um vídeo de grandes planos exteriores, captados em movimento e em ângulo inclinado, completa o esclarecimento do espectador acerca de uma metodologia criativa que explora a existência de diferentes olhares – pontos de vista – sobre a realidade e que evoca os filmes experimentais, “de caminhada”, realizados nos anos 70 por Ângelo de Sousa.

João Nora enquadra este trabalho num plano ideal, desenhando um mapa físico-mental cujos contornos configuram a letra “R”. Uma vez delineado o itinerário a examinar, o artista realizou uma campanha fotográfica onde uma série de veículos brancos se transformaram em objecto de atenção. A partir das fotografias resultantes foram seleccionados, isolados, descontextualizados, ampliados e transfigurados em pintura alguns fragmentos e enquadramentos, facilitando o desvanecimento da identificação da imagem total através de um efeito blow up. Nesta incursão no potencial abstracto da realidade circundante adverte-se uma liberdade no acto pictórico e uma propositada contenção das suas habilidades técnicas, alheias ao virtuosismo exacerbado do hiper-realismo ortodoxo e próximas do ânimo meditativo dos Brancos de Noronha da Costa e aos esquemas compositivos monocromáticos de Ângelo de Sousa. Não existe alarde nem brilhantismo em excesso, mas equilíbrio entre sensibilidade e pensamento, transpondo para o plano pictórico, mediante alterações de escala de imagens de imagens, a fragilidade e relatividade dos limites da representação da realidade.

Fernando Montesinos



_____________________________________________________________________________________

João Nora

Como o Rei Midas

Publicado em: L+Arte, nº35, Abril 2007

O que é a imagem? Onde está o seu valor? O que a legitima a nível social? E comercial? As obras de João nora fazem perguntas e jogam com as respostas.

“ Na nossa cultura (e, sem dúvida nas outras), o discurso não era, na sua origem, um produto, uma coisa, um bem; era essencialmente um acto – um acto colocado no campo bipolar do sagrado e do profano, do lícito e do ilícito, do religioso e do blasfemo.” Michel Foulcault, O que é um autor?

Uma sociologia da arte feita, na sua maioria, com telas, tintas e pincéis? Ou um trabalho que foca aspectos da teoria sociológica da arte? Por vezes vídeo e instalação. O sistema da arte é desafiado; as suas estruturas, instituições, os seus modos de recepção e aceitação. Testando a noção de autoria, a viabilidade e valorização do autor nos circuitos comerciais, institucionais e sociais, relembrando as questões, sempre actuais, em torno da legitimação do objecto artístico, usando a apropriação, relendo fenómenos da História da Arte – inscrevendo-se numa tradição longa, desde Manet, passando por Duchamp, até aos situacionistas e conceptualistas – a obra do artista João Nora tem-se afirmado sobretudo por uma prática continua de experimentação dos limites plásticos, pictóricos e expressivos da pintura.

Constantes nas conversas mantidas com o artista são as questões e não as respostas. Nascem de forma espontânea, mas são depois de surgirem, pensadas, reflectidas, através da escrita, de um processo de conceptualização, de consideração intelectual. Para João Nora, é este o processo que define aquilo que é o seu verdadeiro trabalho. (....)

(...) A arte não responde. A arte questiona. Na obra de João Nora, é o sistema da arte que é interrogado, testado, confrontado com as suas perversidades, limites contradições. O circuito comercial, os agentes, emissores e receptores. A aura o carácter aurático da obra de arte. Ou a sua atribuição? A confusão generalizada entre o que é e não é. E o que leva a ser. E quem diz ser. (...)

(...) há um olhar moderno. Uma flanerie que alimenta e estimula o artista a partir para uma reflexão. Que o obriga a escrever, investigar, encontrar soluções de teste. Não são características, ou melhor dizendo, funções estéticas ou puramente formais, que nos levam a encontrar paralelos ou pontos de contacto entre os trabalhos de João Nora e o de outros artistas. São atitudes, posicionamentos face ao sistema da arte que nos levam a inscrever o artista numa linha de rupturas, de reflexão estruturalista, onde relembramos algumas ideias de Jan Mukarovsky, sobre a arte como facto semiológico, sobre a função, a norma e o valor estético como factos sociais e, claro, sobre a obvia relação entre individuo – criador e receptor – e o objecto artístico. (...)

A autoria é um ponto central na obra de João Nora. No vídeo Transmuting experience, já mencionado, o artista relembra-nos outros que se auto reflectiam – Helena Almeida, Bruce Nauman -, mostra-se no atelier, pintando um auto-retrato, confirmando a pratica da pintura, construindo-se, projectando a sua validade para o plano bidimensional. Afirmando a sua existência a sua autoria. Um conceito central no seu percurso. (...) João Nora mostra-nos isto quando falamos com ele, nas obras que vimos, nos jogos que cria nas rasteiras e partidas que ambiciona levar a cabo. (...) Como um rei Midas. O que toca torna-se ouro. Uma tela que pinta vale. Apenas porque é artista. (...)

Pedro Faro



_____________________________________________________________________________________

João Nora

A propósito de MySpace

Publicado em: Art Notes, nº 25, Janeiro de 2009

A primeira vez que tomei contacto com a obra de João Nora foi em Abril de 2006, aquando da exibição do Projecto Mimesis no Show Room da galeria Graça Brandão no Porto e, desde então, sigo com interesse o trabalho de um artista que, sem renegar a tradição realista e sensorial da pintura, tem conseguido desenvolver uma série de propostas onde concilia, inteligentemente, o bem-fazer com discursos de disposição conceptual.

MySpace é a concretização da segunda parte da trilogia iniciada com o projecto anteriormente mencionado, onde começou a abordar a questão da autoria a partir de processos e experiências pictóricas de grande exigência e talante cerebral, integrando a pintura com outros meios, não como uma espécie de hibridação mas como um recurso associado à ideia de original e cópia e à reflexão perseverante em torno dos mecanismos de legitimação da imagem pictórica - em princípio única, original e irrepetível - no contexto do mercado da arte contemporânea.

O ponto de partida de MySpace, projecto de assumido carácter colectivo, teve lugar em Maio de 2007, com a contratação do designer gráfico Tony Fortuna, criador de um flyer no qual se lançava a seguinte pergunta: gostas de fotografar? André Santos, roadie da banda rock Bunnyranch, foi o encarregado de distribuir os folhetos nos locais onde o grupo ia actuando e, a partir de aí, entre todas as pessoas interessadas em participar, seis foram seleccionadas pelo próprio artista através de um pequeno questionário. O propósito desta colaboração consistia em fotografar com máquinas descartáveis, a troco de 25 euros, uma série de cenas, momentos e pessoas em espaços e contextos a meio caminho entre o íntimo e o quotidiano; imagens que passavam a ser da inteira propriedade do ideólogo do projecto. As condições eram simples e claras: o artista proporcionava o material de trabalho, pagava um valor monetário a câmbio do registo fotográfico de instantes isolados e os seis elementos seleccionados assinariam obrigatoriamente uma declaração com a cedência dos direitos das imagens resultantes. Após uma cuidada selecção das mesmas, o trabalho de atelier foi desencadeado e, com este, um processo pictórico que se serve da fotografia como ponto de partida e culmina no espaço da galeria, plataforma comercial - pois proporciona o ambiente estável e favorável à exposição, venda e negócio de obras de arte - e discursiva - pois é aqui que a mensagem do projecto ganha sentido e vigor, é aqui que óleos e guaches compartem protagonismo com seis livros-documento que ajudam a descodificar o back office e a história do programa. Um por cada pessoa que cedeu fragmentos visuais das suas vivências.

Uma das características mais sui generis da obra de João Nora é a sua capacidade para colocar questões ao espectador e estabelecer diálogos amistosos entre o passado e o presente do ofício de artista. No caso específico de MySpace, todo o projecto responde ao mais puro espírito do tempo actual: em rede, fugaz, descartável. Por um lado, a própria designação do projecto alude ao homónimo e, mais do que conhecido, sítio web de interacção social, fundado em 2003 e constituído por perfis pessoais de usuários que incluem redes de amigos e familiares. No atractivo e sedutor mundo da Internet, fiel à cultura do efémero, rapidamente surgiram competidores, o último dos quais Facebook, actual deus entre as redes sociais e que, com toda a certeza, não será o último. Em qualquer caso, neste âmbito, falar de projectos que se estendam ao longo de cinco ou mais anos é raro, para não dizer milagroso. Por outro lado, a utilização do flyer como método de divulgação do projecto invoca também o perecível, um tipo de publicidade que, sejamos sinceros, acaba sempre no chão, espezinhado sem piedade. Arte de usar e tirar, de rápido consumo, produto da nossa sociedade industrializada e capitalista. E não esqueçamos também a intervenção dos “fotógrafos” convidados, cujo instrumento de trabalho foi uma câmara de fotos descartável... objecto de captação do transitório, do desejo de recordar momentos entretanto perdidos e apenas com significado para os seus detentores. A transposição destas imagens para tela e papel sob a forma de impressões ou reminiscências do calor da vida supõe cristalizar os vestígios do reflexo de uma certa realidade. A exploração da existência de olhares divergentes sobre uma mesma realidade (reconstruída pelo artista) é, por certo, outro dos principais leitmotiven da produção de João Nora.

MySpace - obra de arte colectiva, porque colectiva foi a modalidade adoptada para a sua concretização e múltiplos foram os actores intervenientes - esbate assim os conceitos de autoria e de meio. Quem é o responsável criativo? Estamos, em boa verdade, ante pinturas, quadros-foto ou espectros pictóricos de fotografias? A conexão e reverência sem excessos à arte conceptual e ao hiperrealismo torna-se portanto inevitável. Basta referenciar a John Baldessari e os seus Commissioned Paintings (1969), série de pinturas expostas com o seu nome, mas executadas por artistas amadores e sign painters a partir de fotografias realizadas pelo próprio Baldessari, e a Chuck Close e os seus retratos reticulados e pixelados, autênticas fotografias feitas com pincéis. Em ambos casos, e também em João Nora, o objectivo não é reproduzir o carácter realista da fotografia e, no entanto, apesar do que se apresenta ao espectador ser formalmente uma pintura, a essência subjacente é fotográfica.

Uma fotografia e uma pintura são o mesmo? A grande arte é apenas pintura? O futuro da arte contemporânea passa por deixar de exacerbar o eu do artista? Estas e outras interrogações são lançadas no projecto MySpace.

PS: A exposição esconde um último segredo. Disfarçada de pintura esconde-se uma fotografia, do mesmo tamanho e formato que os guaches. Qual será o seu preço?

Fernando Montesinos

Licenciado em História da Arte pela Universidade de Murcia, Mestre em Museologia pela Universidade Politécnica de Valência (Espanha) e Doutorando em História da Arte na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (bolseiro da FCT). Membro da Associação Internacional de Críticos de Arte (AICA).


‹‹home